sábado, 16 de junho de 2007

Gerardo, o Integralismo e a mediocridade do preconceito ideológico


GERARDO, O INTEGRALISMO E A MEDIOCRIDADE DO PRECONCEITO IDEOLÓGICO

Por Victor Emanuel Vilela Barbuy

Nem bem Gerardo Mello Mourão – o genial poeta da trilogia “Os peãs” e de “Invenção do mar” e igualmente genial romancista de “O valete de espadas” e ensaísta de “A invenção do saber” – deixava este Mundo, na esperança da ressurreição, e jornalistas medíocres já escreviam artigos de uma total parcialidade, na tentativa de denegrir seu nome.
Gerardo é um dos mais conhecidos e respeitados autores brasileiros no exterior, havendo sido indicado ao Prêmio Nobel em 1979 e sido admirado por poetas da envergadura de um Octavio Paz, um Pablo Neruda, um Efrain Tomás Bó, um Michel Deguy e mesmo de um Ezra Pound, para quem o “poeta do País dos Mourões” teria escrito, no seu “poema espantoso”, tudo o que ele, o “Pã de Idaho”[1], teria tentado, debalde, escrever: a “epopéia da América”.
No Brasil, a despeito do ignominioso silêncio de muitos escravos do preconceito ideológico – pessoas do mesmo naipe de Luiz Weis, de Alberto Dines e de todos os demais intelectuais de terceira categoria que repetem as mesmas inverdades caluniosas contra o grande poeta cearense e o Integralismo, movimento que conhecem somente pelo que dele escreveram seus inimigos – Gerardo teve seu valor reconhecido por escritores e críticos literários do porte de Octavio de Faria, José Cândido de Carvalho, Carlos Drummond de Andrade, Wilson Martins e Tristão de Athayde (Alceu Amoroso Lima).
Logo no princípio de seu tendencioso artigo intitulado “O poeta, o espião e os ‘traços de direita’”[2], Luiz Weis se refere a Plínio Salgado como o “arremedo de Fuhrer” [sic]. Ora, será que ele não sabe que Plínio Salgado - um de nossos maiores pensadores e escritores, autor de obras como “O estrangeiro”, romance social tão elogiado por literatos e críticos literários do quilate de Monteiro Lobato, Cassiano Ricardo, Andrade Muricy, Afrânio Peixoto, Menotti Del Picchia, Tasso da Silveira, Augusto Frederico Schmidt, José Américo de Almeida, Jackson de Figueiredo, Agripino Grieco, Tristão de Athayde e Wilson Martins, dentre outros, e a mundialmente reconhecida “Vida de Jesus” que Pe. Leonel Franca bem chamou a “jóia de uma literatura” – foi pioneiro na condenação ao nazismo, como bem lembrou o próprio Gerardo em seu monumental artigo “Quem tem medo de Plínio Salgado?”[3], tendo sido o autor da “Carta de Natal e Fim de Ano”, de 1935, e de inúmeros artigos contrários ao nazismo e ao racismo.
Falando em racismo, é importante lembrar que a Ação Integralista Brasileira contou com milhares de negros em suas fileiras, inclusive em posições de liderança. Dentre estes inúmeros Integralistas negros, podemos citar figuras como João Cândido, Abdias do Nascimento (aliás grande amigo de Gerardo), Guerreiro Ramos, Sebastião Rodrigues Alves e Ironides Rodrigues. O Integralismo contou ainda com a admiração e o apoio do vigoroso poeta e pensador tradicionalista Arlindo Veiga dos Santos, fundador e líder da Frente Negra Brasileira e da Ação Imperial Patrianovista.
Muitos judeus também pertenceram ao Movimento do Sigma. Dentre estes, destaco Roberto Simonsen, Adam Steinberg e Aben-Atar Neto, este último fundador do Centro Oswaldo Spengler, Chefe do Departamento Universitário e mais tarde Secretário Provincial de Propaganda do Integralismo no Rio de Janeiro, além de amigo de Gerardo, que muito o admirava.
Enganam-se aqueles que – como Weis – afirmam ser o Integralismo mera cópia do fascismo italiano, uma vez que o Integralismo, diversamente do movimento do “Fascio”, se inspira sobretudo nos ensinamentos perenes do Evangelho, na Doutrina Social da Igreja e no pensamento de autores como Jackson de Figueiredo, Farias Brito, Alberto Torres, Euclides da Cunha, Oliveira Vianna, Oliveira Lima, Pandiá Calógeras e Tavares Bastos, e, ao contrário da ala do fascismo que acabou prevalecendo – a de Benito Mussolini e Alfredo Rocco – condena o cesarismo e o Estado Totalitário de inspiração hegeliana, aos quais opõe, respectivamente, a Democracia Integral e o Estado Integral.
Concordo com Weis em ao menos um aspecto: o necrológio do poeta ipueirense publicado na “Folha de S. Paulo” poderia falar mais a respeito do Integralismo.
Com Alberto Dines – que saiu em defesa do colega em um artigo tão tendencioso quanto o seu, no que toca o Integralismo, intitulado “’Traços de direita’ e evidências de tribalismo”[3] - concordo não apenas a respeito do necrológio, como também no que tange à genialidade poética de Mello Mourão, ao fato de o Integralismo ter deixado profundas marcas nas elites civil e militar do País – marcas que considero positivas e só perigosas aos inimigos da Pátria – e ao fato de outros jornais terem dado destaque aquém do devido à obra literária de Gerardo em seus necrológios, em razão de haver sido ele funcionário da “Folha”.
O necrológio de Gerardo poderia falar da relevância que teve o Integralismo, considerado o primeiro movimento cívico-político de amplitude nacional e, ainda, o primeiro “movimento de massas” do País, contando – de acordo com o “Monitor Integralista” de 07 de outubro de 1937 – com 1.352.000 inscritos, distribuídos em 3.600 núcleos.
Poderia, ainda, o necrológio do gênio de Ipueiras publicado pelo jornal de que foi correspondente na distante e misteriosa China, falar da importância, no plano intelectual, dos Integralistas e do Integralismo, movimento a que Gerardo se referiu, recentemente, como o “mais fascinante grupo da inteligência do País”.
A “Folha de S. Paulo” poderia ter citado ao menos alguns dos cerca de mil intelectuais de relevo que vestiram a camisa-verde, como Miguel Reale, Gustavo Barroso, San Tiago Dantas, Olbiano de Mello, Madeira de Freitas, Adonias Filho, Câmara Cascudo, Goffredo e Ignacio da Silva Telles, Ribeiro Couto, Herbert Parentes Fortes, Alfredo Buzaid, Hélio Vianna, Antônio Gallotti, Américo Jacobina Lacombe, Thiers Martins Moreira, Rosalina Coelho Lisboa, Rubem Nogueira, Pe. Hélder Câmara, Ernani Silva Bruno, Rui de Arruda Camargo, Mario Graciotti, Roland e Margarida Corbisier, Mazzei Gumarães, Leães Sobrinho, Ítalo Galli, Jorge Lacerda, Anor Butler Maciel, Damiano Gullo, Wolfram Metzler, Amaro Lanari, Jayme Regalo Pereira, Mansueto Bernardi, Lauro Escorel, Lopes Casali, Francisco de Almeida Prado, Antônio Toledo Piza, Euro Brandão, Ubirajara Índio do Ceará, Raymundo Padilha, José Loureiro Júnior, Raimundo Barbosa Lima, Belisário Penna, João Carlos Fairbanks, Alcibíades Delamare, José Lins do Rego, Jayme Ferreira da Silva, Lúcio José dos Santos, Alberto Cotrim Neto, Adib Casseb, Félix Contreiras Rodrigues, Vicente do Rego Monteiro, Tasso da Silveira, Augusto Frederico Schmidt, Vinícius de Moraes, Paulo Fleming, Francisco Karam, Mayrink e Dantas Mota, este último considerado por Carlos Drummond de Andrade como o maior poeta de Minas, além, é claro, de Plínio Salgado e de Gerardo, que o mesmo Drummond considerava o maior poeta do Brasil.
Além dos cerca de mil intelectuais de projeção que fizeram parte da Ação Integralista Brasileira, temos ainda outros, pertencentes à segunda geração dos que atenderam ao chamado de Plínio Salgado, tais como Hélio Rocha, Gumercindo Rocha Dorea, Augusta Garcia Rocha Dorea, Genésio Pereira Filho, Ronaldo Moreira, Silveira Neto, Dídimo Paiva, Antônio Pires, Acacio Vaz de Lima Filho e José Baptista de Carvalho, sem falar no Senador Marco Maciel, que fez parte do chamado movimento Águia Branca e também escreveu o belíssimo prefácio à 22ª edição da “Vida de Jesus” de Plínio Salgado.
Weis, em seu artigo já citado, chama de infame Gustavo Barroso, um de nossos mais notáveis escritores, contistas, cronistas, ensaístas, folcloristas, historiadores e jornalistas. Chama de infame o autor de “Terra de Sol”, o fundador do Museu Histórico Nacional, o idealizador do Regimento dos Dragões da Independência, o Imortal que presidiu por mais uma vez a Academia Brasileira de Letras, o homem que Câmara Cascudo considerava o “Mestre incontestável do folclore brasileiro”...
Weis afirma que era nazista o autor de “Brasil – colônia de banqueiros”, o mais corajoso libelo jamais lançado neste País contra o capitalismo explorador, inimigo figadal de nossa Pátria e de nosso Povo. Ora, como pode ser nazista alguém que nunca deixou de sublinhar as diferenças existentes entre a Doutrina do Sigma e a da Cruz Gamada, defendendo, inclusive, que o nacional-socialismo poderia evoluir para o Integralismo, desde que se livrasse das idéias racistas e da concepção totalitária de Estado?
Weis acusa Olympio Mourão Filho e a Ação Integralista Brasileira de estarem por trás da farsa do “Plano Cohen”, que serviu de pretexto à implantação do Estado Novo. Na verdade – como ficou provado diante do Conselho de Justificação do Exército – Mourão Filho não teve culpa alguma da divulgação do conteúdo do documento por ele escrito pelo General Góis Monteiro, que dele se apoderara sem o conhecimento do futuro “general do pijama vermelho”. E o documento em questão – que tinha a finalidade de servir para o estudo de métodos revolucionários, era inspirado sobretudo em uma matéria de uma revista espanhola e fora rejeitado por Plínio Salgado, que o considerara por demais fantasioso – levava a assinatura de Cohen em razão de Bela Khun, o tristemente famoso tirano vermelho de Budapeste, uma vez que, segundo Gustavo Barroso, Khun seria uma corruptela de Cohen[5].
Dines – no artigo em apoio a Weis a que anteriormente me referi – fala dos Integralistas que teriam sido espiões a serviço da Alemanha de Hitler, mas, curiosamente, não faz referência alguma aos vários marinheiros Integralistas que afundaram nos navios brasileiros torpedeados pelos submarinos alemães e aos igualmente numerosos soldados Integralistas que tombaram nos campos e colinas da Itália.
O fecundo editor, escritor e jornalista Gumercindo Rocha Dorea – amigo e companheiro de ideais de Gerardo Mello Mourão, de quem publicou a maior parte dos livros – no último parágrafo da significativa orelha da 2ª edição de “O Brasil na lenda e na cartografia antiga”, de Gustavo Barroso, observa que:
“Como diz Nelson Pereira dos Santos, a propósito do autor de ‘Uma cultura ameaçada: a luso-brasileira’ (Gilberto Freyre), e que aqui estendemos aos citados acima [Vicente do Rego Monteiro, Madeira de Freitas, Belisário Penna, Câmara Cascudo e Gustavo Barroso], os seus desafetos vão – ou já foram – ‘parar no esgoto da história’, enquanto eles continuam atuais...”
Havendo me estendido além do que me cabia, dou por concluído este tão singelo artigo, na absoluta certeza de que Gerardo será sempre lembrado como um dos maiores poetas da Língua Portuguesa e como um dos mais brilhantes romancistas e ensaístas do Brasil, enquanto seus detratores, esses escravos do preconceito ideológico, sairão da vida para entrar no “esgoto da história”, ou – para empregar a expressão de Lênin – na “lata de lixo da história”.



NOTAS

[1] A expressão “Pã de Idaho” é de Gerardo Mello Mourão.
[2] O referido artigo foi publicado no “blog” “Verbo Solto”.
[3] O artigo em questão foi publicado na “Folha de S. Paulo” a 03/05/1995.
[4] O texto de Dines está disponível em seu “blog”, o “Circo da Notícia”.
[5] A respeito do “Plano Cohen”, recomendo a leitura de “O homem e o muro”, de Rubem Nogueira, “A ameaça vermelha – o Plano Cohen”, de Hélio Silva, “Memórias – a verdade de um revolucionário”, de Olympio Mourão Filho, e de “História das revoluções brasileiras”, de Glauco Carneiro.

terça-feira, 5 de junho de 2007

A singularidade de Gerardo Mello Mourão


O magnífico artigo que lerão a seguir, de autoria do poeta e jornalista José Inácio Vieira de Melo, co-editor da revista Iararana, foi escrito - especialmente para o Jornal Opção - por ocasião das celebrações dos noventa anos daquele que foi considerado o maior poeta do Brasil por Carlos Drummond de Andrade, Wilson Martins, Octavio de Faria e José Cândido de Carvalho, dentre tantos outros ilustres escritores e críticos literários.


Gerardo Mello Mourão


Gerardo Mello Mourão chega aos 90 anos - completados no dia 8 de janeiro - como uma das vozes mais representativas da li­teratura brasileira contemporânea. Um poeta de expressão sin­gular, considerado por vários críticos e muitos escritores - entre eles Carlos Drummond de Andrade, Wilson Martins, José Cân­dido de Carvalho e Octavio de Faria - como o poeta maior do Brasil.

Nascido em 1917, no pé da serra do Ibiapaba, em Ipueiras, sertão do Ceará, Gerardo teve uma vida bastante acidentada e cheia de aventuras. Sua obra tem merecido, ao longo de mais de meio século, a atenção de grandes nomes da literatura oci­dental, como Ezra Pound, Octavio Paz, Jorge Luis Borges e Ro­bert Graves.

Aos 11 anos foi para o Seminário São Clemente, em Congonhas do Campo, Minas Gerais, onde permaneceu até os 18 anos, pe­ríodo em que aprendeu nove idiomas e traduziu, num exercício diário, textos do grego e do latim, de Homero e Píndaro, Virgílio e Horácio, Ovídio e Propér­cio.

Abandonou o convento em 1935, poucos meses antes de pro­ferir os votos de pobreza, castidade e obediência. Começou a estudar direito, mas abandonou. Logo em seguida, aderiu ao Integralismo, assim como Câmara Cascudo e Adonias Filho, conduzido para o movimento pelo crítico Tristão de Athayde. Foi preso 18 vezes durante as ditaduras do Estado Novo e Mili­tar. Numa delas, ficou no cárcere cinco anos e dez meses (1942-1948), quando escreveu o célebre romance O Valete de Espadas e dez elegias de perdição reunidas no livro Cabo das Tormentas. Viajou por toda a Europa, América e Brasil.

O país em que viveu mais tempo, no exterior, foi o Chile, onde deu aulas na Universidade Católica de Valparaíso. Na década de 1980, morou em Pequim, na China, onde foi correspondente do jornal Folha de São Paulo. Mais precisamente, foi o primeiro correspondente brasileiro e sul-americano na China. Escreveu, até pouco tempo, crônicas diárias para os principais jornais do Brasil.

A vasta e variada obra de Gerardo Mello Mourão integra uma das mais elevadas contribuições para a literatura contemporâ­nea e consegue alcançar dimensões universais, como é de se esperar de toda alta escritura. Escreveu, com brilhantismo e erudição, em verso e em prosa (romances, contos, ensaios e biografias). Entre seus livros, destacam-se o romance O Valete de Espadas (1960), o livro de ensaios A Invenção do Saber (1983), a epopéia Invenção do Mar (1997) e a trilogia poética Os Peãs, composta pelos livros O País dos Mourões (1964), Peripécias de Gerardo (1972) e Rastro de Apolo (1977).

O Valete de Espadas, traduzido para vários idiomas, é um ro­mance que está na pauta do surrealismo, mas em quase nada se assemelha ao realismo mágico latino. Sua profundidade, seus abismos indecifráveis, aproximam Gerardo de autores cen­tro-europeus, como Herman Hesse, de O Lobo da Estepe. O personagem principal, Gonçalo Falcão de Val-de-Cães, é um ser perplexo diante da irresidência do ser no mundo. Um dia, ao sair do hotel em que estava hospedado, percebe que está em uma cidade completamente desconhecida; no dia seguinte, acorda em um navio cujo rumo também desconhece. A epígrafe bíblica, logo no início do livro, adequa-se perfeitamente ao es­tado de coisas e às tensões da personagem: "Não conheço se­quer o caminho".

A Invenção do Saber, reunião de ensaios, é um convite ao pensamento. É também um libelo contra a idolatria tecnológica da atualidade e o seu culto da especialização - "o especialista é o individuo que sabe cada vez mais sobre cada vez menos". E apresenta como contraposição uma cultura humanística, que, no momento, encontra-se desprestigiada, mesmo por aqueles a quem caberia defendê-la. Inclui, além de 30 artigos originaria­mente publicados na imprensa, palestras apresentadas em uni­versidades brasileiras e estrangeiras, que abordam temas como a palavra, o poder e o saber.

A epopéia Invenção do Mar, Prêmio Jabuti de 1998, é conside­rada pelo crítico Wilson Martins como Os Lusíadas brasileiro, que o chama mesmo de "Os Brasíliadas", em artigo publicado no jornal Gazeta de Curitiba.

De fato, Mello Mourão, por outros caminhos e de outras formas, alcança o sopro criador de um Camões, aliás, faceta essa que já havia logrado com Os Peãs. Ezra Pound percebeu na trilogia Os Peãs, iniciada com O País dos Mourões, que Gerardo tinha inaugurado o canto da genealogia da América. E esta é uma velha ambição cosmogônica: fazer, não a genealogia pessoal, mas a genealogia do seu povo, do seu mundo.

Passear pela seara da obra de Gerardo Mello Mourão é sentir o "aroma, maciez e música" de uma poesia maior. Nenhum outro poeta brasileiro recebeu, em quantidade e qualidade, número tão grande e tão respeitável de artigos sobre sua obra. So­mente os literatos de ouvidos cegos, que não conseguem al­cançar o ritmo da sua poética poliédrica, é que não percebem a sua grandiosidade.

O próprio Drummond declarou-se "possuído de violenta admira­ção pelo imenso, dramático e vigoroso painel" da poesia de Gerardo, pois sabia do opus magnífico do bardo de Ipueiras, que "atestará para sempre a grandeza singular e a intensidade universal da poesia". Mello Mourão não cabe em moldes nem em escolas literárias. É singular. E vem construindo, solitário, a saga do povo brasileiro.

Entrevista: Gerardo Mello Mourão


Seguem os trechos principais da entrevista que Gerardo Mello Mourão concedeu por escrito à Revista E, do SESC de São Paulo. Os mesmos trechos se encontram transcritos no Portal do SESC: http://www.sescsp.org.br/sesc/revistas/revistas_link.cfm?Edicao_Id=82&Artigo_ID=847&IDCategoria=1016&reftype=2

Se por um lado sua obra poética é majestosa, com pretensões universalistas, por outro, o senhor utiliza elementos locais da sua família e do prosaísmo da vida nordestina. Como conciliar esses dois enfoques aparentemente discrepantes?
Majestosa? Só se for no sentido musical, em que as partituras indicam na pauta as palavras maestoso, ou andante, ou allegro e assim por diante, para marcar o ritmo e o tempo de trechos da sonata ou cantata. Nestes termos, quem me dera que meus versos guardem e transmitam ao leitor a marcação rítmica que está em toda obra poética, de Homero a nossos dias. Todo homem é uma dança, e tudo começa e tudo acaba em dança - advertia Keats. Assim é a poesia. Nasceu da marcação com os pés no chão da dança. Ainda hoje a grande poesia alemã e inglesa - como a poesia dos salmos hebraicos - guarda em cada verso os ritmos greco-latinos, a medida dos tons pela combinação das sílabas breves e longas. Esta é a poesia mensurada de John Donne e Shakespeare, de Byron a Coleridge, a Pound, a Eliot. Nas línguas neolatinas, o ritmo se faz pelas átonas e tônicas, pelo número de sílabas: heptassílabos, os decassílabos, os alexandrinos etc. Mas mesmo em nossa grande poesia, de Dante a Camões, a Mallarmé, a Baudelaire, a Rimbaud, a Leopardi, a Fernando Pessoa, está lá dentro de cada verso a batida dos pés de Homero, Virgílio, Propércio, Ovídio, com seus hexâmetros e pentâmetros, seus dáctilos, anapestos e troqueus - as sonoras combinações de sílabas. É este "arranjo" que dá espírito ao corpo do verso, e o poeta sabe gerá-lo, com a inocência do bom soprador de flauta ou tocador de viola, que rege o furo e a corda do instrumento com a sabedoria intuitiva e mágica que exclui mesmo a intenção. Por geração espontânea, digamos. Sem essa sabedoria mágica, qualquer sujeito poderá metrificar com rigorosa matemática, "more geométrico", seus falsos versos: mas fará prosa sem saber, como o Mr. Jourdain de Molière. É certo que a revolução estática do princípio do século passado, de Marinetti a Tzara, a Breton e outros, tão fecunda com as descobertas do futurismo, do surrealismo, do dadaísmo, dos concretismos e assim por diante, resolveu abominar a métrica e o verso, como formas artificiais que aprisionaram o pensamento. Oswald de Andrade, um extraordinário "promoter" da boa literatura, embora sendo um poeta menor, como é o caso também de Mário de Andrade, repeliu o poeta que lhe propunha a experiência do soneto, com a famosa imprecação: "Abaixo a gaiola!". Pelo visto, não sabia o que era um soneto ou não sabia o que era uma gaiola. O soneto, como a quadra, como o decassílabo, como o alexandrino etc., é um instrumento poético, como a flauta, o piano, o violão e o cavaquinho são instrumentos musicais. Com eles se faz música boa ou música ruim, dependendo dos dedos ou do sopro e do ouvido de quem toca. O poeta não é um escravo de versos medidos e contados, mas é servidor e provedor do ritmo, do ritmo mensurado e numerado, como nos tercetos do Dante, na oitava rima de Camões, nos sonetos de Gongora, e busca sempre o ritmo - todos os ritmos-, como Claudel ou Pound ou Walt Whitman. "Todos os ritmos, sobretudo os inumeráveis", anunciava Manuel Bandeira.
Mas a resposta já está ficando longa: é a má sina das respostas que em geral são sempre mais compridas do que as perguntas. Em todo caso, eu diria ainda que o poema se constrói muito como o "opus" musical: a repetição incessante da mesma frase musical, em todos os tons é a "fuga", ou o "cânon" que estão na medula sonora dos textos mais líricos de Mozart, de Beethoven e de Bach, por exemplo. O poeta repete um número sorteado de sílabas e de palavras, sem nexo entre si, ou trechos de crônicas antigas e histórias do dia-a-dia, como o músico, com apenas as oito notas musicais estabelecidas na escala de Guido d´Arezzo - do-re-mi - e estas oito notas não são uma gaiola, mas a matéria prima do canto. Não há outras, e sair delas, é desafinar. Veja os cantadores de feira do nordeste: eles cantam redondilhas, versos de oito pés em quadrão, os chamados gabinetes de dez sílabas ou o "galope-a-beira-mar" de rigorosos endecassilacos metastasianos. Nunca estudaram métrica, não precisam medir versos no dedos, mas jamais incorrem num verso de pé quebrado. O ritmo nasceu com eles. Os elementos familiares e quotidianos é que salvam o poeta do prosaismo.
Convivi muito na juventude com o historiador paulistano Ernani Silva Bruno, muito importante para a nossa geração, e descobrirmos, ainda na adolescência, que a história do mundo é a história de cada homem. E vice-versa. Ernani fundara em São Paulo o movimento "Boitatá". Boitatá é a cobra de fogo, que abre e ilumina o caminho arrastando-se sobre seu chão. Ernani Silva Bruno cunhou uma frase que é o santo e senha dos que pretendemos nossa inserção no universo: "É preciso abrir uma picada para o universal". A palavra "picada", regionalismo típico do caipira de São Paulo ou do matuto do Nordeste, sugere um compromisso com o sítio próprio de nossa tribo. A maneira correta de partir é sair de onde estamos. Até por força da matemática euclidiana, eu só chego lá se partir de onde venho. Eu parto de um engenho de cana, de um curral reiúno, de uns coronéis valentes e bravateiros, de umas mulheres beatas, de uns cangaceiros matadores, bons no rifle e no punhal, que fundaram a Renascença da civilização brasileira.

Quais foram os escritores que o influenciaram mais intimamente? Com quais poetas o senhor alinha sua obra?
Não sei se é próprio falar de influências. Prefiro lembrar algumas referências. A primeira delas foi o caboclo Anselmo Vieira, cantador da feira de Ipueiras, com sua rebeca rouca, sua voz gemedeira, cantando quadras e sextilhas de sete sílabas, mourões de oito pés em quadrão, galopes-à-beira-mar em puros endecassílabos de Metastasio e assim por diante. Aos cinco anos aprendi seus versos de cor, depois de tanto ouvi-los, antes mesmo que os pais do folclorismo nordestino, Gustavo Barroso, Leonardo Mota e Câmara Cascudo os recolhessem em antologias. Depois, entre os doze e os treze anos, comecei a ler e traduzir em grego e em latim, Homero e Píndaro, Virgílio e Horácio, Ovídio e Propércio, nos exercícios que eram a voluptuosa disciplina cotidiana e o pão de cada dia no convento de redentoristas holandeses em que vivi até os dezoito anos. E naturalmente a Sagrada Escritura, em que fui iniciado desde a primeira adolescência e que me deu a salubre convivência e o vício da vida inteira no convívio de Isaías, Jeremias, Ezequiel, e Daniel com os quatro evangelhos e as cartas de São Paulo, tudo isso no ritmo religioso do canto gregoriano, cantado de manhã, de tarde e de noite na serenidade claustral, ritmo dominante, talvez, de minha poesia. E mais: nos textos às vezes da Koiné grega, mas sobretudo na linguagem vigorosa do violento latim de são Jerônimo. Este Jerônimo que é para mim, como para André Gide, Léon Bloy e Valéry Larbaud, o maior escritor do Ocidente. De uma de suas passagens, a conversa de Jesus com seus amigos apóstolos na Última Ceia, o agnóstico Gide diria que se nunca tivesse havido um Deus ele teria afinal aparecido naquela noite, com aquele texto, pois jamais um ser humano poderia tê-lo redigido. Só um Deus. No ano passado, em Seminário realizado na Sorbonne pelo Professor Christos Klairis, em sua cátedra Lingüística e com a participação de quinze lingüistas, para um debate sobre um de meus livros de poemas, lembrou aquele mestre que Dionísio, o Trácio, em sua Gramática, a mais antiga que se conhece no Ocidente, ao falar da natureza do poema, dizia que a poesia é um sopro. E Christos Klairis invocava ainda um dos mais antigos estudos de poética que se conhecem, o de Zenon e Eléia, para quem a poesia deve ter duas medidas: a metonímia e os "pachos", a palavra que quer dizer "espessura". (Daí vem a palavra "pacote"). Com esta espessura que se constrói com as palavras, uma depois da outra, em cima da outra, o poeta estende no leito dos vales da linguagem o rio volumoso de corrente de sua expressão, para a metáfora de seu canto. Talvez por isto o que é próprio do rio do poema é ser um rio caudaloso. Também em 1999, o jornal Le Monde promovia um debate entre escritores para identificar a qualidade e as tendências da mais autêntica poesia francesa contemporânea. Houve um entendimento praticamente unânime de que os dois poetas mais representativos da França neste século poderiam ser Claudel, entre os mortos, e meu amigo Robert Marteau, entre os vivos, com seus largos, longos, caudalosos versos, capazes de sustentar a metonímia e o pachos da visão eleata da poesia. Sobretudo porque esta caudal se faz com as águas substantivas da metáfora, e não com os berliques e berloques dos adjetivos, artificiais e ornamentais da eloqüência vazia. Parece-me que seria fútil ou arrogante alinhar com a de outros poetas a minha própria obra. Lembraria mesmo a resposta de Heidegger, quando lhe perguntaram como situar "a filosofia de Heidegger". A resposta do filósofo foi que não havia uma filosofia de Heidegger, e se houvesse não haveria importância alguma. O que existe e o que importa é a filosofia, ponto. No caso, a poesia, e não a poesia de Gerardo.

Durante sua trajetória, o senhor nunca se filiou a nenhuma corrente estilística, nem ideológica. O senhor não concebe a produção artística engajada, como um suporte para para ideologias?
A ideologia é a negação da fecundidade e da liberdade do espírito. O sujeito que se escraviza a uma ideologia não tem idéias. Tem uma idéia só. Às vezes, fascinado por um sonho generoso, o homem se encerra no círculo de ferro, estéril e sem saída, de uma ideologia. O século 20 conheceu esta indigência e esta impostura, com a endemia do marxismo. Parece que hoje não há mais marxistas nos círculos respeitáveis do pensamento em nenhum país culturalmente aparelhado. O marxismo, que se tornou uma redução política na União Soviética e seus satélites do Leste, já não existe mais a não ser na pobre ilha desolada de Fidel Castro, onde sobreviverá, se sobreviver, até o dia em que o idoso "comandante" venha a morrer, e na indigente e agoniada Coréia do Norte, até o dia em que se recolham a um manicômio o ditador "minus habens" ali entronizado por direito hereditário. O marxismo começou a morrer no dia em que um de seus maiores aplicados clérigos, o lúcido e inteligente Achille Occhetto, Secretário Geral do Partido Comunista italiano proclamou: "Il comunismo è finito." Aí veio o terremoto de Berlim, e um dos mais eminente cardeais da ideologia da Europa, convidado a falar sobre aqueda do muro, respondeu: "Houve um terremoto, e eu não discuto com um terremoto." No Brasil, quase todos os membros do atual governo pagaram seu pedágio ao marxismo. Hoje, seria uma injúria ou uma desinformação supor que algum deles seja ainda marxista. Restam alguns cavalheiros na mediocridade do mundo acadêmico ou dos supostos profissionais da cultura, que encontraram no marxismo um pé-de-cabra para seus supostos êxitos literatura, conseguidos à custa dos patrulhamentos vergonhosos e imorais, institucionalizados por um funcionário de Stalin, o medíocre escritor Ilia Ehrenburg, como documenta o grave terrível livro de Lottman, La Rive Gauche. Mas, de certo modo o destino do marxismo chega ao fim, com a morte das ideologias, que vão parar todas na lata de lixo da história. Isto não significa que devamos satanizar o marxismo e os marxistas. Eles cumpriram uma importante missão histórica: acelerar o respeito aos direitos dos trabalhadores na selva selvagem do capitalismo desumano. Veja homens como o Oscar Niemeyer: ele é o último dos moicanos do comunismo, e é um santo por sua profissão de fé de amor ao ser humano.

Por que a inteligentzia que compunha os movimentos de vanguarda no início do século 20 (como Ezra Pound e T.S Eliot) comprou idéias fascistas?
Não sei se a inteligentzia comprou idéias fascistas. Mas os exemplos de Ezra Pound não são únicos. Na literatura inglesa, além de Chesterton, que foi militante uniformizado do Partido Fascista de Sir Oswald Mosley, como tantos outros intelectuais, basta lembrar que D. H. Lawrence, o mais importante romancista inglês de seu tempo, assinou manifestos favoráveis a Mussolini, como o próprio James Joyce, que saudou o Duce italiano como uma esperança jovem para o mundo. Quase todos os membros do círculo que girou em torno de Pound, os chamado "Pound's artists" acompanhavam as idéias políticas do poeta. As patrulhas de esquerda escondem esses fatos, temerosas do peso desses nomes na opinião cultural. Mas todo o mundo sabe disso. Em Portugal, praticamente toda a inteligentzia lusíada aplaudia Salazar e participava de seu governo. O poeta Fernando Pessoa é signatário de vários manifestos e moções de louvor e apoio a Salazar. Na Alemanha, além de Heidegger, passaram pelo nazismo figuras como o cientista Max Planck, criador da teoria dos "quanta", sem a qual não teria existido Einstein, a Heisenberg, criador da teoria mais avançada da física de nosso tempo, a teoria da indeterminabilidade, que ampliou os horizontes einsteinianos. O dramaturgo Gerhard Hauptmann foi filiado ao Partido Nazista, como Prêmio Nobel de literatura norueguês Knut Hamsum e o pintor Paul Klee saudou o advento de Hitler. Na Itália, o próprio Alcide de Gasperi, ao chefiar o primeiro governo do país depois de Mussolini, recusou-se a promover julgamentos contra os fascistas, para não Ter de meter na cadeia toda a inteligentzia italiana. O poeta D'Annunzio recebeu o título nobiliárquico de Príncipe das mãos de Mussolini, por sua luta armada e por suas odes em favor do fascismo. O mesmo Mussolini nomeou Senadores romanos pelo Partido Fascista o teatrólogo Pirandello e o poeta Marinetti, criador do futurismo e cabeça de todo o vanguardismo literário e artístico da Europa. O então jovem poeta Ungaretti pediu a Mussolini para fazer o prefácio de seu primeiro livro de poemas. E por aí afora, sem esquecer que o próprio Benetto Croce, pai do liberalismo deste século e pai da moderna crítica literária e do pensamento estético moderno, antes de recolher-se ao ostracismo em seu "palazzo" napolitano, em silenciosos e digno protesto contra o regime, votara a favor da investidura de Mussolini como Primeiro-Ministro, depois da famosa Marcha sobre Roma. Quando se sabe que até o divino poeta Rainer Maria Rilke, tão alheio aos problemas temporais, saudou com entusiasmo a chegada de Hitler, não é difícil imaginar o que aconteceu no resto da Europa. As relações do psicanalista Jung com o ditador alemão foram as mais explícitas. Hitler o fez presidente da Sociedade Alemã de Psicanálise, e teve nele seu mestre e seu guru: a escolha da cruz suástica como símbolo do nazismo foi uma indicação pessoal de Jung. E além de pai da suástica, Jung foi o inventor da pureza da raça ariana e da exclusão dos judeus da Europa, teses que se tornaram marca registrada do nazismo.
Na França, basta lembrar os livros reeditados no ano passado, do escritor israelense Zeev Sterbnell (Gallimard, quase 700 páginas), A Direita Revolucionária e As origens francesas do fascismo. Seria interminável a lista dos escritores franceses oriundos do fascismo, como o próprio Bernanos e toda a legião de impressão de que Charles Maurras fez a cabeça dos franceses militantes e simpatizantes da "Action Française". Tem-se a impressão de que Charles Maurras fez a cabeça dos franceses representativos, nas letras, nas artes e na política, incluindo o General De Gaulle, Pompidou, o socialista Mitterand e assim por diante. A França madrugou para o fascismo e o anti-semitismo com o "affaire Dreyfus". Assim, não é por acaso que o mais consagrado - talvez o maior - poeta francês do século, Paul Claudel, tenha escrito uma ode retumbante ao General Franco quando o fascismo despontou na Espanha. E ainda recentemente, em minucioso levantamento divulgado pelo jornal de esquerda Le Monde, a melhor crítica literária do país, ao relacionar os grandes escritores do século no país, chegava à conclusão de que todos eram de direita. E concluía: "Hélas! Ils sont à droite". Num cotejo entre Aragon e Céline, isto é, entre o poeta símbolo da literatura de esquerda e o romancista condenado como nazista, não era possível hesitar na escolha. O nome a ficar para a posteridade era Céline. E ponha cotejos semelhantes nisto! Basta lembrar o caso da fama pirotécnica de Sartre, cuja obra filosófica está condenada a um julgamento irremissível: é apenas um pastiche, uma contratação medíocre da obra de seu antigo mestre Martin Heidegger, "ad usum Delphini". No caso, "ad usum" das militâncias de esquerda nas ruas e nas medíocres academias do Terceiro Mundo.

Esse exemplo foi seguido no Brasil com o Estado Novo?
No Brasil, até por ser impostura e uma contrafação do fascismo, o Estado novo não aliciou entusiasmos maiores no universo artístico cultural. A eventual presença de artistas e escritores em órgãos do governos não chega a comprometer ideologicamente ninguém. Ninguém vai acusar Carlos Drummond ou Clarice Lispector de serem partidários da ditadura só pelo fato de haver o poeta servido no gabinete do Ministro da Educação, Gustavo Capanema - um grande ministro, de resto - ou a romancista por haver tido um emprego no DIP, a agência de propaganda do Goebbels tupiniquim do Estado Novo. Mesmo intelectuais e artistas que foram colaboradores de projetos do governo da ditadura, como Cassiano Ricardo, o citado Gustavo Capanema, o maestro Villa-Lobos, o pintor Portinari e o arquiteto Oscar Niemeyer, estão todos eles acima de qualquer suspeita. Aqui, os compromissos com o fascínio da direita devem ser catalogados entre os militantes e simpatizantes do integralismo, entre os quais não fujo de incluir meu próprio nome, certamente o menos importante entre tantos outros, como Luiz da Câmara Cascudo, Miguel Reale, Gustavo Barroso, Gofredo Silva Teles, Almeida Sales, Ernani da Silva Bruno, Rolan Corbisier, Antônio Galloti, Américo Jacobina Lacombe, Adonias Filho Guerreiro Ramos, os poetas Olegário Mariano, Jorge de Lima, Augusto Frederico Schmidt, Tasso da Silveira e Francisco Karam - doce poeta hoje tão esquecido - e toda uma legião de pensadores, professores, artistas plásticos, músicos, acadêmicos, e o próprio Tristão de Athayde, por cuja mão cheguei à filiação integralista. Isto, sem falar nos que passaram apenas por alguma tempo pelo integralismo como o crítico Álvaro Lins e o romancista José Lins do Rego. Mas o integralismo brasileiro era uma direita à moda da casa e não pode ser confundido com o nazismo. Sua satanização pelas esquerdas incompetentes é uma falta de informação. Por exemplo: o integralismo estava cheio de militantes judeus ortodoxos. Meu primeiro chefe imediato, o Diretor do Departamento Universitário a que fui filiado, era o brilhante judeu Aben-Attar Neto, fundador do Centro Osvaldo Spengler, que passou de Chefe do Departamento Universitário a Secretário Provincial de Propaganda do Integralismo no Rio de Janeiro. Mas isso é outra história.

O poeta é um santo?
O poeta é um santo, um santo mártir, no sentido etimológico da palavra, que quer dizer testemunha. Mas o poeta é também um endemoniado. As duas coisas, para lá de todas as medidas. Gide e meu saudoso amigo, o romancista Lúcio Cardoso, achavam que o demônio é a mais permanente fonte de inspiração.

Durante sua trajetória, o senhor nunca se filiou a nenhuma corrente estilística, nem ideológica. O senhor não concebe a produção artística engajada como um suporte para para ideologias?
A ideologia é a negação da fecundidade e da liberdade do espírito. O sujeito que se escraviza a uma ideologia não tem idéias. Tem uma idéia só. Às vezes, fascinado por um sonho generoso, o homem se encerra no círculo de ferro, estéril e sem saída, de uma ideologia. O século 20 conheceu essa indigência e essa impostura, com a endemia do marxismo. Parece que hoje não há mais marxistas nos círculos respeitáveis do pensamento em nenhum país culturalmente aparelhado. O marxismo, que se tornou uma redução política na União Soviética e seus satélites do Leste, já não existe mais a não ser na pobre ilha desolada de Fidel Castro - onde sobreviverá, se sobreviver, até o dia em que o idoso "comandante" venha a morrer - e na indigente e agoniada Coréia do Norte, até o dia em que se recolham a um manicômio o ditador "minus habens" ali entronizado por direito hereditário. O marxismo começou a morrer no dia em que um de seus mais aplicados clérigos, o lúcido e inteligente Achille Occhetto, secretário-geral do Partido Comunista italiano, proclamou: "Il comunismo è finito". Aí veio o terremoto de Berlim, e um dos mais eminente cardeais da ideologia na Europa, convidado a falar sobre aqueda do muro, respondeu: "Houve um terremoto, e eu não discuto com um terremoto". No Brasil, quase todos os membros do atual governo pagaram seu pedágio ao marxismo. Hoje, seria uma injúria ou uma desinformação supor que algum deles seja ainda marxista. De certo modo o destino do marxismo chega ao fim, com a morte das ideologias, que vão parar todas na lata de lixo da história. Isto não significa que devamos satanizar o marxismo e os marxistas. Eles cumpriram uma importante missão histórica: acelerar o respeito aos direitos dos trabalhadores na selva selvagem do capitalismo desumano. Veja homens como o Oscar Niemeyer: ele é o último dos moicanos do comunismo, e é um santo por sua profissão-de-fé de amor ao ser humano.

Qual a finalidade da literatura?
A finalidade da literatura é a verdade. Mais claramente: é a beleza da verdade. O escultor Brancuse pergunto um dia a Pound o que ele buscava em seu trabalho. O poeta respondeu: a beleza. Brancuse, que era oficial do mesmo ofício comentou: "Beauty is difficult". Por isso, Lautréamont advertia: "A missão da poesia é difícil. Ela não se mete nos acontecimentos da política, na maneira pela qual se governa um povo, não faz sequer alusão aos períodos históricos, aos golpes de Estado, aos regicídios, às intrigas da corte. Não trata nem mesmo das lutas que excepcionalmente o homem trava consigo próprio, com suas paixões. O que ela faz é descobrir as leis que dão corpo e vida à política teórica, à paz universal, às refutações de Maquiavel, aos corneteiros da obra de Proudhon, à psicologia da humanidade". Por isso mesmo, Novalis lembrava as origens apolíneas da poesia nos oráculos de Delfos. Ela junta as palavras e os sons que compõem a magia de sua mensagem logicamente incompreensível, claros enigmas que se dão ao conhecer na zona incontaminada do conhecimento intuitivo. Do conhecimento mágico. A Sibila Délfica, ao proferir certa vez um oráculo a um capitão de Atenas, foi por ele solicitada a interpretá-lo. Respondeu: "Apolo não ensina. Apolo revela." Assim, a poesia. Ela não ensina. Ela apenas revela, e isto é tudo. Enganam se os poetas que querem ensinar. Como o nosso bom e sofrido João Cabral, que escrevia seus breves versos didáticos como se estivesse sempre ensinando, pedagogicamente. Ele mesmo sabia que não era um poeta e preferia ser chamado de "escritor de poesia". Escritor, sim, de poesia não. Seus textos devem ser didáticos, mas nunca poéticos. Proferem instruções, ordens do dia, mas não revelações. O mesmo equívoco ocorre com todos os outros supostos poetas engajados.

Tido por muitos como adepto das esquerdas, o senhor recebia pressões por parte da intelligentzia de esquerda para tingir sua obra com um caráter político imediato?
Nas duas ditaduras deste país, a do Estado Novo e a do regime militar de 64, fui perseguido, preso, torturado (em 67 quase até a morte), primeiro como fascista, depois como comunista. Estou vivo por milagre. O oportunismo revolucionário, à esquerda e à direita, forçou a catagolação de quem lhe convinha, neste ou naquele esquema. Haja vista o escritor Otto Maria Carpeaux, até filiado ao fascismo austríaco, que foi confiscado pela esquerda apenas porque lutou aqui contra a ditadura militar. Todos nos querem enquadrar.

O crítico literário Wilson Martins afirma que a literatura brasileira é irrelevante para os outros países. O senhor concorda com ele?
O sr. Wilson Martins, que exerce a missão de crítico com independência, dignidade e uma lucidez rara entre nós para os de seu ofício, sabe o que diz.

Nós ainda padecemos do mal da especialização, da ditadura da certeza e dos bárbaros da individualidade que marcaram nossa história?
A especialização é uma das pragas de nosso tempo cultural. Cito sempre Ortega: o especialista é o sujeito que sabe cada vez sobre cada vez menos.

O senhor considera o esquema proposto por Decartes falido? É preciso acreditar mais na essência do homem? O ser e a razão são irreconciliáveis? O senhor acredita que estamos retomando gradualmente a espiritualidade? Ela é legítima?
Seria preciso um tratado inteiro para responder a esta pergunta. O racionalismo cartesiano não é tão excludente como pensam alguns. O próprio Descartes conta que formulou seu famoso teorema depois de uma revelação que lhe chegara num sonho. Quer dizer: o sonho e a razão, a fé e o raciocínio têm um ponto de encontro no âmago do ser.

O fenômeno da globalização impõe a homogeneização cultural?
A resposta também teria que ser longa. Depois que Paul Valéry nos advertiu que as civilizações morrem, muita gente passou a confundir civilizações com cultura. As culturas não morrem. E quando morrem, é para nascer de novo. O bem-sucedido pragmatismo norte-americano confunde as coisas no simplismo de sua filosofia do êxito. Nas universidades americanas Sócrates e Platão são acusados de fascistas, e os ingênuos professores das Harvards da vida proclamam que estes filósofos estão superados. Não é assim: um automóvel Ford 1930 pode estar superado pelo Ford 1980. Mas o pensamento essencial de um filósofo de 1500 anos atrás não é superado com a facilidade com que se supera um artefato mecânico. Homero ou Dante não podem ser superados. Situam-se num campo em que não existe esse negócio de superação.

Nesse sentido, existiria uma cultura brasileira?
Mesmo quando seja nos seus balbucios, é claro que há uma cultura brasileira. Refiro-me à cultura do saber, como a definiu Max Scheler, e que não tem nada a ver com os conceitos sociológicos e antropológicos de cultura que estão na moda. A cultura brasileira há de ser um quinhão valioso no formal de partilha da cultura ocidental.

Como o senhor enxerga a crise por que passa a Universidade pública? Estamos realmente vivendo um período de crise ou é o conceito de universidade que está deteriorado? Existe alguma saída viável?
Creio que a Universidade no mundo inteiro, salvo raríssimas exceções, está em crise. Melhor: não é a Universidade que está em crise, com a depravação pós-iluminista do conceito de saber.

Como o senhor assistiu às comemorações dos 500 anos de Descobrimento? Mais uma vez a festa - elemento que caracteriza o país - foi imposta de cima para baixo e os representantes legítimos foram alijados?
Convidado certa vez para as comemorações do segundo centenário de Goethe, Ortega y Gasset excusou-se dizendo - "no estoy para commemoraciones." Eu também, não estou para comemorações, sobretudo quando dirigidas por comandos institucionais.

De sua experiência como correspondente no Oriente, notadamente na China, como o senhor vê a recepção dos países a valores ocidentais, depois da abertura econômica?
Não sei. A China é difícil. Não creio que um povo tribalmente homogêneo, com 5 mil anos de história escrita, possa um dia perder sua identidade. Aquele perigo de ianquização da Europa, denunciado por Ortega y Gasset, não existe na China nem no Japão. Talvez acabe um dia ocorrendo o inverso, como se diz dos gregos: acabaram sempre colonizando seus colonizadores.

No fim da década de 70, o senhor afirmou que naquele momento era necessário "maquiavelizar" o Brasil, seguindo uma orientação de Octavio de Faria. Isso ainda se faz necessário hoje em dia? Como Nicolau pode ajudar nosso governo?
Em seu admirável livro quase adolescente, Maquiavel e o Brasil, escrito aos 22 anos, Octavio de Faria abriu uma picada para a organização do poder político neste país. O Chico Campos, seu mestre e sobretudo seu discípulo em algumas coisas, tentou encontrar aquele momento maquiavélico, também lembrado por Popper, depois de Octavio, para repetir a experiência florentina de fundação de uma civilização política. Mas o ditador de que Chico Campos dispunha não estava à altura. O general Castelo Branco, também influenciado por Campos e pelo romancista Adonias Filho, antigo integralista e discípulo de Octavio, pensou em ser o protagonista desse momento maquiavélico. Também não esteve à altura, até porque Machiavel não propunha ditadores. Propunha estadistas. Neste momento, embora oriunda das esquerdas e dos equívocos marxistas, parece que o presidente Fernando Henrique está, de certo modo, atento aos semáforos do momento maquiavélico. O tempo pode ser propício. Mas o espaço político em que está condenado a operar é precário e inepto. Pode até haver uma vocação de Lorenzo di Medicis na solidão do Planalto. Mas não há aquela graça do Ponte Vecchio sobre o rio, por onde cruzava diariamente para seu despacho na mesa de carvalho do Palazzo della Signoria o amanuense Niccolo Machiavello. No chão de figueiras estéreis do estéril burgo podre de Brasília jamais poderão medrar o espírito e o cérebro do florentino que sonhou o perfil do Príncipe para sua admirável república.

segunda-feira, 4 de junho de 2007

Homenagem a Gerardo Mello Mourão


Por Victor Emanuel Vilela Barbuy

Deixou de bater o coração daquele que foi o último grande bardo vivo do Brasil. Faleceu no dia 09 deste mês, no Rio de Janeiro, aos noventa anos, o magno escritor, poeta, romancista e jornalista Gerardo Mello Mourão.
O Ceará, o Sertão, o Nordeste, o Brasil, a América, o Mundo Lusófono, a Hispanidade e a Latinidade perdem, com a partida de Mello Mourão para a Milícia do Além, um de seus mais brilhantes escritores e pensadores.
Um dos mais respeitados e admirados autores brasileiros no exterior, Gerardo Mello Mourão foi indicado ao Prêmio Nobel em 1979, havendo sido sua inscrição realizada pela New York University, e recebeu elogios de poetas do quilate de um Octavio Paz, de um Pablo Neruda, um Michel Deguy e até mesmo de um Ezra Pound. Este último, considerado por Mello Mourão como o maior poeta dos últimos séculos, assim escreveu: "Toda a minha obra foi uma tentativa de escrever a epopéia da América. Não o consegui. Ela foi escrita no poema espantoso do poeta do País dos Mourões.”
Em nosso País, a despeito do silêncio criminoso de alguns escravos do preconceito ideológico, que jamais o perdoaram por haver militado na Ação Integralista Brasileira, Mello Mourão e sua obra tiveram seu valor reconhecido por críticos do porte de um Wilson Martins, que chamou seu livro “Invenção do Mar” de “Os Brasilíadas”, numa comparação com “Os Lusíadas” de Camões, e por escritores da estirpe de um José Cândido de Carvalho, de um Octavio de Faria e de um Carlos Drummond de Andrade, que declarou-se “possuído de uma violenta admiração pelo imenso, dramático e vigoroso painel” da poesia de Gerardo Mello Mourão.
Foi o mesmo Carlos Drummond de Andrade quem, diante de “O País dos Mourões”, comovidamente exclamou: “Esta poesia foi tudo quanto sempre desejei escrever na vida, e nunca tive força. Gerardo Mello Mourão teve.” E foi, ainda, o mesmo Carlos Drummond de Andrade quem reconheceu: "O grande poeta de Minas Gerais não sou eu: - é o espantoso poeta Dantas Mota.
O grande poeta do Brasil também não sou eu: - é o nordestino Gerardo Mello Mourão. Sempre sonhei chegar à poesia a que ele chegou. Não tive força. Ele teve."
Observou Afonso Botelho que "a poesia da língua portuguesa passou a sustentar-se sobre quatro pilares: Camões, Pessoa, a carta de Caminha e Gerardo".
De toda a obra poética de Gerardo, que foi eleito, em 1997, pela Guilda Órfica, o poeta do século XX, destaco – além do autêntico “Os Brasilíadas” que é “A Invenção do Mar”, livro dedicado a Luiz Gonzaga, o “Homero sertanejo” – a trilogia épica “Os Peãs”, composta por “O País dos Mourões”, “Peripécia de Gerardo” e “Rastro de Apolo”.
Outra das obras-primas do grande escritor cearense é “O Valete de Espadas”, que, considerado o primeiro romance expressionista de nossa Literatura, foi escrito enquanto o autor se encontrava injustamente preso. Por falar em prisões injustas, foi Gerardo preso injustamente por dezoito vezes, durante o Estado Novo de Getúlio Vargas e o Governo Militar, que também cassou seu mandato de Deputado Federal.
“O Valete de Espadas” foi escrito, bem como as dez elegias da obra “Cabo das Tormentas”, na ocasião em que Gerardo, acusado de ser um espião nazista pela ditadura estadonovista de Vargas, permaneceu encarceirado por quase seis anos, até ser libertado em razão de um apelo de intelectuais franceses liderados por Jean Paul Sartre, Simone de Beauvoir e Albert Camus, cuja peça teatral “Calígula” Gerardo traduziu para o nosso idioma.
Cearense quatrocentão e católico apostólico romano tradicionalista, Gerardo Mello Mourão nasceu em Ipueiras, ao pé da Serra da Ibiapaba, a 08 de janeiro de 1917. Menino ainda, deixou o seu ensolarado “país do Grande Ceará” e seguiu para o Sul, onde estudou no célebre Seminário Redentorista de Congonhas do Campo, em Minas Gerais, e no Convento da Glória.
Mello Mourão já havia desistido da vida monástica, quando, no Rio de Janeiro, encontrou-se com Alceu Amoroso Lima, o Tristão de Athayde, que o aconselhou a entrar para o Integralismo, movimento cívico-político oficialmente criado a 07 de Outubro de 1932, quando o eminente escritor, romancista, jornalista e político Plínio Salgado lera, no Teatro Municipal de São Paulo, o seu chamado Manifesto de Outubro.
Embora tenha sofrido, em razão de sua filiação ao Integralismo, as piores perseguições, Gerardo Mello Mourão declarou: “Não tenho do que me arrepender, participei do mais fascinante grupo da inteligência do País.” Deste grupo que reuniu inúmeras centenas de intelectuais do mais alto valor e projeção, incluindo personagens como Gustavo Barroso, Miguel Reale, Olbiano de Mello, San Tiago Dantas, Madeira de Freitas, Câmara Cascudo, Adonias Filho, Herbert Parentes Fortes, Goffredo e Ignacio da Silva Telles, Ribeiro Couto, Alfredo Buzaid, Rubem Nogueira, Hélio Vianna, Antônio Gallotti, Américo Jacobina Lacombe, Thiers Martins Moreira, Pe. Hélder Câmara, Rui de Arruda Camargo, Ernani Silva Bruno, Raymundo Padilha, Raimundo Barbosa Lima, José Loureiro Júnior, Belisário Penna, Alcibíades Delamare, João Carlos Fairbanks, Guerreiro Ramos, Abdias do Nascimento, José Lins do Rego, Jayme Ferreira da Silva, Tasso da Silveira, Augusto Frederico Schmidt, Vinícius de Moraes, Paulo Fleming, Francisco Karam e Dantas Mota - aquele que Carlos Drummond de Andrade considerava o maior poeta mineiro -, dentre tantos outros não menos importantes.
Neste momento de profundo pesar pelo falecimento de Gerardo Mello Mourão, consolo-me em saber que ele será para sempre lembrado como um dos maiores escritores da Língua Portuguesa e espero que Deus suscite, na atual geração e nas gerações vindouras, homens do valor de Gerardo, para que o Brasil possa ser a Grande Nação com que sonhou aquele nobre bardo da Província de José de Alencar, Antônio Conselheiro, Farias Brito e Gustavo Barroso.